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A construção duma política pública no campo das drogas: normalização sanitária, pacificação territorial e psicologia de baixo limiar

A construção duma política pública no campo das drogas: normalização sanitária, pacificação territorial e psicologia de baixo limiar by  Simão Mata and Luís Fernandes

Author(s): Simão Mata and Luís Fernandes

Abstract:

O presente artigo centra-se sobre a recente construção duma política pública em Portugal no campo das drogas, cujos eixos fundamentais são a redução de riscos e minimização de danos (RRMD) e a descriminalização do consumo e da posse para consumo de todas as drogas ilícitas. Daremos atenção ao primeiro dos eixos, dividindo a nossa análise em dois momentos:

  1. A emergência e consolidação das medidas e estruturas de RRMD. Relacionamo-las com duas crises: a crise sanitária aberta pela rápida expansão do VIH, das hepatites B e C e da tuberculose em consumidores problemáticos; a crise das periferias, que trás para o debate público a figura do “bairro social problemático”, vulgarizado na linguagem mediática como “bairro das drogas” e representado como locus de insegurança. A RRMD teria assim como alvo prioritário concentrações de consumidores problemáticos situadas em comunidades urbanas ditas em exclusão, interpretando no terreno uma política alternativa ao modelo médico-psicológico da droga-doença e das terapias centradas na abstinência. Estavam assim criadas as condições de possibilidade duma intervenção territorializada, proximal e de vocação comunitária.
  2. Num segundo momento ilustraremos a intervenção em RRMD através do trabalho levado a cabo por uma equipa de rua em territórios psicotrópicos da zona ocidental do Porto. Enquanto membro da equipa, um de nós elaborou um diário de campo entre 2009 e 2013, caracterizando os atores e territórios, bem como as principais áreas, formas e objetivos da intervenção. Dedicaremos atenção especial ao papel do psicólogo numa equipa multidisciplinar e apresentam-se dois resultados da nossa experiência interventiva: 1) status dos atores e identidade de lugar nos territórios psicotrópicos; 2) aquilo que designaremos por psicologia de baixo limiar.

This paper focuses on the recent elaboration of a public policy on drugs in Portugal, the main axes of which are risk and harm reduction (RHR), together with the decriminalization of use and possession for use of all illicit drugs. We will concentrate on risk and harm reduction, organizing our analysis in two stages:

  1. The emergence and consolidation of RHR policies and structures. We articulate these processes with two crises: the public health crisis brought about by the rapid expansion of HIV, B and C hepatitis and tuberculosis in problematic drug users; the crisis of urban peripheries, which brings the "problematic council estate" or the "drugs estate" to the public debate, where it is portrayed as an insecure arena. RHR would thus have clusters of problematic drug users located in excluded urban areas as its main target. This is an alternative to the medical-psychological model based on understanding drug use as a disease and on abstinence-based therapies. This created the condition for a territorialized, proximal intervention of communitarian base;
  2. On a second stage, we will illustrate the RHR intervention through work carried out by an outreach team in psychotropic territories in the west part of Porto, Portugal. As a team member, one of the authors wrote a field diary between 2009 and 2013, describing actors, territories, and the main areas, forms and objectives of intervention. We will pay particular attention to the role of the psychologist in a multidisciplinary team. Two results are presented based on our intervention experience: 1) actors' status and place identity in psychotropic territories; 2) what we chose to call low-threshold psychology.

Article:

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Introdução

A forma como Portugal tem vindo a construir uma política pública no chamado “problema da droga” desde que, em 2001, criou suporte legislativo para mudanças importantes na forma como respondia a tal problema tem sido alvo de atenção internacional. A comunicação social de vários países tem reportado aquilo que designa como “o modelo português”, e dirigentes do organismo público responsável pela implementação duma estratégia nacional no campo das substâncias psicoativas – o ex-Instituto da Droga e da Toxicodependência, atual Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e Dependências – têm sido convidados a expor tal “modelo” em vários parlamentos nacionais e outras instâncias políticas. Não é objetivo deste artigo expor o “modelo português”[1] ou mesmo saber se é realmente algo tão diferenciado doutras práticas que mereça tal epíteto, mas refletir sobre as condições que conduziram a mudanças importantes na gestão do “problema da droga”, nomeadamente na expressão territorial e comunitária que passou a ser parte importante desta gestão. Assim, depois duma primeira parte em que analisaremos as condições de possibilidade de novas práticas interventivas em resposta a uma crise sanitária e socioterritorial, ilustraremos uma prática de redução de riscos e minimização de danos a partir do exemplo concreto duma equipa de rua que intervém em territórios psicotrópicos da zona ocidental do Porto[2].

O nosso trabalho procurou uma caracterização do fenómeno droga em alguns bairros sociais da zona ocidental do Porto: os bairros do Aleixo, Pinheiro Torres, Viso e Ramalde. As nossas questões de investigação podem resumir-se da seguinte forma: Como se organizam atualmente as práticas de venda e consumo de drogas nesses territórios? Como se operacionalizam algumas estratégias de intervenção comunitária realizadas junto de consumidores de drogas nestes locais?

 

1. EMERGÊNCIA E ESTABILIZAÇÃO DUMA POLÍTICA SOCIO-SANITÁRIA: A REDUÇÃO DE RISCOS E MINIMIZAÇÃO DE DANOS

1.1 A “crise das periferias” e as novas respostas de intervenção social e comunitária

A evolução em direção a uma política pública no campo das drogas que tem em Portugal como máximos expoentes a descriminalização do consumo de todas as substâncias psicoativas ilegais (decreto-lei 183 de 21 de junho de 2001) e os programas e estruturas de redução de riscos e minimização de danos (consagrados legalmente no mesmo decreto-lei) relaciona-se com um contexto de crise cuja expressão mostrou a necessidade urgente de mudanças. Dita assim, a frase soa a refrão: a palavra “crise” tornou-se endémica e, como toda a palavra insistentemente repetida, perde precisão e, enquanto explicação dum dado estado da realidade, torna-se autoevidente e encerrada em si própria: por que estamos como estamos? Por causa da crise. E por que estamos em crise? Esta crise resulta do agravamento das anteriores, que resultam das anteriores – a crise seria pois um traço estrutural das sociedades capitalistas[3].

Assente que está a desconfiança em torno da palavra, digamos assim mesmo que é uma dupla crise que nos ajuda a compreender o desenvolvimento das respostas interventivas que hoje englobamos na expressão redução de riscos e minimização de danos (RRMD). A primeira delas é sanitária e deve-se ao grande aumento de doenças infeciosas entre os consumidores de drogas, sobretudo os que utilizavam a via endovenosa (VIH, hepatites, tuberculose); a segunda é conhecida dos especialistas da questão urbana e da sociologia da exclusão social como “crise das periferias”[4]. Por razões que não serão tratadas neste artigo, mas que investigámos ao longo das décadas de 90 e 2000 (Fernandes, 1998; Fernandes, 2002; Fernandes & Pinto, 2004; Fernandes & Ramos, 2010), as relações dos indivíduos com drogas ilícitas que se revelaram mais destrutivas, tanto para a sua saúde física e mental como para os contextos envolventes, aconteceram e acontecem ainda em zonas urbanas ou periurbanas de periferia desqualificada (nomeadamente os bairros sociais “problemáticos” ou “críticos”) e de espaços intersticiais de concentração de pobreza.

 É assim natural que a grande maioria dos projetos e programas de RRMD tenha sido implementada junto de indivíduos ou grupos em condições altamente precárias de vida. Instalam-se preferencialmente junto do “suffering body of the city”, para tomar a expressão que Le Marcis (2004) usa a propósito das periferias de Joanesburgo. Analisando o crescimento exponencial do VIH na população da cidade no período de 1990 a 2000, o autor fala numa distribuição urbana desigual do vírus, sendo o centro urbano claramente menos afetado relativamente às periferias.

 O “Suffering body of the city” reveste-se dum duplo significado: por um lado, representa o caráter de distribuição desigual das doenças no espaço urbano, particularmente do VIH, estando portanto as periferias em sofrimento efetivo; por outro lado, vem salientar a pouca capacidade desta população em recorrer aos serviços de saúde e à rede assistencial, estando por isso em sofrimento resultante dessa limitação. Rubens Adorno (2011) e Taniele Rui (2012) chegam a resultados muito semelhantes quanto a utilizadores de drogas da zona conhecida por Cracolândia em São Paulo, propondo a autora a expressão “corpos abjetos” para indicar o modo como os dependentes de crack mais estigmatizados carregam na sua aparência corporal a marca da adicção, das doenças infeciosas e da vida de rua e o modo como essa corporalidade “abjeta” é o elemento mais forte da estigmatização de que são vítimas. Escrevíamos também nós a propósito do Porto que “o fenómeno droga participa desse cenário de crise urbana, cruzando e sobrepondo na sua trajetória as trajetórias dos outros fenómenos problemáticos: sem-abrigo, prostituição de rua, imigração clandestina. Este cenário de crise da urbe convocou a resposta rápida da intervenção social, que reagiu reativando a sua vocação de terreno, exercida agora sobre situações de emergência social caracterizadas pelo desabrigo” (Fernandes, Pinto & Oliveira, 2006, p. 80)

Um dos temas mediáticos – mas também sociológicos e criminológicos – acerca das metrópoles é o da rua como palco da proliferação de novas marginalidades (errância associada à cada vez maior presença de migrantes clandestinos, de pessoas sem domicílio fixo, de pessoas a viver na rua) e desvios (grupalidades juvenis desviantes, toxicodependentes de rua, com associação a pequena criminalidade e ao crescimento do sentimento de insegurança).

 Perante a pouca eficácia das respostas institucionais convencionais confrontadas com estes novos fenómenos, a rua começa também, sobretudo a partir dos anos 90, a ser olhada como palco de intervenção - aquilo a que genericamente tem vindo a chamar-se intervenção social de primeira linha ou intervenção de proximidade, de que são exemplo as equipas de rua a atuar junto de trabalhadores e trabalhadoras sexuais e/ou de toxicodependentes, os centros de abrigo/de acolhimento e os drop ins de baixo limiar de exigência.

 Ao longo da última década do século XX vimos assim surgir em Portugal, sobretudo nas suas duas metrópoles, agências de desenvolvimento local vocacionadas para respostas a variadas situações de risco social e psicológico. Impulsionadas por medidas da Europa comunitária que viabilizavam financeiramente a instalação de estruturas e a formação de equipas multidisciplinares, fizeram convergir nas suas intervenções as práticas do serviço social, da psicologia comunitária e da saúde pública. É também nestas agências de desenvolvimento local que surgirão os primeiros projetos de RRMD, ainda antes da existência de enquadramento legal que salvaguardasse medidas socio-sanitárias na altura tão polémicas como a troca de seringas, prática interventiva que desenvolveremos amplamente na segunda parte deste artigo. 

1.2. RRMD e perturbação da estabilidade normativa

A emergência da RRMD ao longo dos anos 90 pôs em causa a estabilidade normativa do dispositivo de “combate à droga”. Tal estabilidade assentava nas ordens terapêutica e jurídica, laboriosamente construídas ao longo de todo o século XX (Agra, 2009; Romani, 1999; Escohotado, 1989), e a ascensão das políticas de RRMD vem introduzir desordem neste status quo, que era marcado pela inoperância: consumos a aumentar, recaídas sucessivas nos programas terapêuticos, consumidores problemáticos longe das estruturas que lhes eram destinadas, aumento do controle policial e da população carcerária sem nenhum reflexo visível na redução da oferta e da procura, bem demonstrado pelo crescimento constante dos consumidores e dos mercados psicotrópicos.

A troca de seringas é bem o símbolo da colocação em causa duma ordem terapêutica, em que os programas livres de drogas acreditavam que as psicoterapias convencionais podiam resgatar o toxicodependente à sua doença e conduzi-lo à cura, sem nunca porem em causa a sua ineficácia, sem nunca refletirem sobre o seu fracasso, que não se media apenas pelas recaídas mas pela quantidade de indivíduos que não acediam a estas estruturas.

A perturbação da estabilidade dava-se, desde logo, ao nível da linguagem: tolerar em vez de perseguir, descriminalizar em vez de punir, olhar o utilizador como responsável por si e pelos seus atos em vez de o remeter para a posição passiva do doente à mercê da sua patologia, falar em “utilizador” em vez de “toxicodependente”. E progressivamente afirmava-se no terreno da política da existência: o direito ao consumo em vez da obrigatoriedade da abstinência, o direito à participação nas decisões que implicassem a vida dos utilizadores, a argumentação que mostrava como uma boa parte dos riscos para o indivíduo e para a sociedade imputados ao consumo de drogas resultavam das próprias políticas proibicionistas (Karan, 2005; Labrousse, 2004; Szazs, 1992).

No final da década de 90 iniciavam-se os primeiros programas de substituição opiácea em meio prisional (Barros, Lucas & Santos, 2010). E a metadona nas prisões foi bem o símbolo da colocação em causa duma ordem jurídico-penal que, desde o início dos anos 80, traduzia para o nosso ordenamento jurídico e para as nossas práticas policiais e carcerárias a war on drugs[5]. No início do milénio, tal como já referimos atrás, foram consagradas juridicamente as principais medidas de RRMD, criadas as comissões de dissuasão da toxicodependência e descriminalizado o consumo, originando uma grande curiosidade da comunidade internacional em relação ao que começou a ser conhecido como “o modelo português” (Domostawski, 2011; Greenwald, 2009).

Em síntese, a progressiva afirmação das políticas de RRMD teve um importante contributo para a reorganização do dispositivo da droga. Para além da sua expansão de modo a assegurar a cobertura de todo o território nacional, este passou a incluir nas suas áreas de missão e nos seus planos de ação a RRMD, reconhecendo a insuficiência das respostas repressiva e de tratamento concebida unicamente no modelo medico-psicológico. Mas sobretudo criou espaço para a intervenção de proximidade, para a ligação das práticas interventivas ao território, para a leitura contextual e comunitária dum problema que até aí era visto como resultando essencialmente do poder do químico sobre o indivíduo e das características intrapsíquicas deste.

Mas é preciso reconhecer que, em Portugal, esta nova política de saúde, social e de afirmação dos direitos dos utilizadores surge praticamente só a partir do interior do dispositivo de intervenção, não tendo como protagonistas os próprios utilizadores de drogas, como aconteceu na Holanda ou na Espanha. De resto, não existia ainda nenhuma associação de utilizadores constituída em Portugal que pudesse ter desempenhado esse papel.[6] Dito doutra maneira, a alavanca inicial não foi a proatividade - os utilizadores a quererem tomar conta do seu próprio destino, a assunção sociopolítica das opções pessoais, do direito à gestão do corpo e do prazer - mas a resposta à crise: da ineficácia do modelo da abstinência assente nas terapias livres de drogas, da prisão como estratégia de “combate à droga”, da periferia urbana degradada, do aumento do VIH/SIDA, da hepatite C e da tuberculose.

A RRMD não está isenta de ambiguidades e contradições: é de facto um novo modo de olhar os indivíduos que consomem drogas e uma nova maneira de lidar com a complexidade das adicções, ou é uma forma de controle de grupos e territórios vistos como problemáticos, uma espécie de pacificador territorial que desvitaliza o poder de denúncia que eles poderiam ter sobre a pobreza e a exclusão (Ilundain, 2004)? Trata-se duma gestão do conflito social que não visa em primeira instância melhorar a situação dos afetados mas conter a sua expressão na urbe mantendo-os num baixo potencial de conflitualidade (Romani, Terrile & Zino, 2003)?

Tissot e Poupoeau (2005) alertam para o risco de a intervenção de proximidade constituir uma panaceia que apaga as desigualdades estruturais no território. Puzzetti e Brazzabeni (2011) são ainda mais contundentes e falam na psicologização do social, da assistência das populações de segmentos marginalizados com a retórica em torno do “apoio” e do “empoderamento” – porque a compaixão não tem inimigos... (inspiram-se na expressão “ethos de compaixão” de Didier Fassin para caracterizar certo tipo de intervenções sociais e comunitárias).

 

2. O CONSULTÓRIO DE RUA E A PSICOLOGIA DE BAIXO LIMIAR

2.1 Breves notas metodológicas

Ilustraremos, nesta segunda parte do nosso exercício, o trabalho de RRMD levado a cabo por uma equipa de rua que faz intervenção em alguns territórios psicotrópicos da zona ocidental do Porto: Bairro do Aleixo, Pinheiro Torres, Viso e Ramalde. Esta equipa é constituída por uma Assistente Social (também coordenadora técnica da equipa), um educador de pares, um técnico psicossocial, dois enfermeiros e, depois da nossa saída em dezembro de 2013, por uma psicóloga[7].A figura do educador de pares representa uma novidade trazida pela RRMD para o campo da intervenção nas drogas, pelo que convém esclarecer o seu papel. De acordo com Broadhead, Heckathorn, Weakliem, Anthony, Madray, Mills e Hughes (1998, p. 43) um educador de pares no contexto da RRMD pode ser definido como: “a small number of community members, usually ex-drug users or injectors or people with street credentials, are hired to contact and work with drug-using members of their own community as clients”. Quanto ao técnico psicossocial, é um professional com formação não universitária e que tem funções de coadjuvação dos outros profissionais.

O principal objetivo desta equipa é o de atenuar ou reduzir os riscos e danos que resultam do consumo de drogas por parte dos utilizadores que recorrem a esses territórios psicotrópicos quer para comprar quer para consumir as substâncias psicoativas. Essa intervenção tem como grande foco os utilizadores de heroína e de cocaína, uma vez que estas duas drogas possuem um maior protagonismo nos territórios considerados, sejam nas práticas que se relacionam com a sua venda sejam nas práticas que se relacionam com o seu consumo.

Um de nós, enquanto membro dessa equipa, realizou, entre Outubro de 2009 e Dezembro de 2013, um diário de campo que funcionou como uma âncora técnica e reflexiva para a intervenção[8]. Os dados foram recolhidos através de técnicas de observação direta, quer na modalidade mais participada quer na mais distanciada, dos atores com que íamos contactando no decurso do nosso trabalho de redutores de danos. Estivemos no terreno, para além do papel de interventores, inspirados por uma postura etnográfica no modo como olhávamos e fixávamos no diário de campo o contexto de que eramos também elemento ativo. Temos verificado essa postura etnográfica noutros trabalhos que caracterizaram a expressão urbana e os atores sociais do fenómeno droga a partir destes dispositivos móveis (e.g. Rui, 2012; Gomes & Adorno, 2011; Raupp & Adorno, 2010; Oliveira, 2009). Os registos de terreno foram recolhidos durante o giro da equipa de rua pelos territórios e, posteriormente, organizados e inseridos no nosso diário de campo. Numa fase posterior, quando o diário era já uma longa narrativa (não falamos no seu fim, pois é um instrumento em aberto, voltando-se a ele sempre que surja oportunidade de regressar ao terreno), procedemos à identificação dos principais conteúdos que emergiam da sua leitura sistemática. Constituímos assim temas estruturantes da narrativa e sobre cada um deles produzimos uma síntese. Dito doutro modo, se o texto do diário constituía uma escrita de primeira ordem, a produção dum texto-síntese a partir dos temas estruturantes constituía um texto de segunda ordem – o equivalente no método etnográfico aos resultados nas investigações mais estandardizadas. É justamente com alguns destes “resultados” que elaboraremos as próximas secções.

2.2 Consultório de rua nos territórios psicotrópicos: o caso do Rotas com Vida

A análise do nosso diário de campo bem como a nossa própria experiência interventiva na equipa de rua permite-nos constatar que a intervenção realizada se organiza em dois grandes eixos. Por um lado, realiza-se uma intervenção direta com os atores sociais ao nível dos territórios referidos e, por outro lado, um trabalho de acompanhamento de alguns utilizadores às diferentes estruturas da comunidade com quem a equipa de rua tem estabelecidos protolocos: hospitais (em particular o Hospital Santo António e Hospital Joaquim Urbano), equipas de tratamento para as toxicodependências, laboratórios de análises clínicas, centros de saúde, loja do cidadão e centro de diagnóstico pneumonológico do Porto (CDP – Porto).

Estes dois eixos interventivos apresentam-se como complementares durante o trabalho da equipa de rua pois constata-se que os acompanhamentos realizados às diferentes estruturas da comunidade têm como base uma constante monitorização e avaliação das necessidades dos atores com que contactamos durante o trabalho de proximidade ao nível dos territórios. Para este trabalho procura-se o envolvimento ativo dos utilizadores de drogas no desenho e na intervenção. A realização de Focus Groups com alguns atores da comunidade permitiu que os mesmos se pronunciassem acerca da intervenção que estava a ser realizada, contribuindo simultaneamente para a sua emancipação e optimização das estratégias interventivas. Por outro lado, a permanência diária dos técnicos nos territórios onde os utilizadores protagonizam ação coloca-os no estatuto de atores sociais e não no de “doentes”, “pacientes”, ou “toxicodependentes”. A não exigência da abstinência de drogas como critério terapêutico inicial funcionou também enquanto estratégia de empoderamento levada a cabo pela equipa, devolvendo ao sujeito a responsabilidade pelo seu regime de utilização de drogas. Esta postura interventiva assente no empoderamento dos consumidores de drogas com quem trabalhamos situa-nos ao nível de um dos princípios orientadores da RRMD enquanto prática de intervenção comunitária. Segundo Southwell (2010, p. 103): “People who use drugs need to become routine partners in harm reduction, supporting the identification, development and promotion of harm reduction strategies”. Na mesma senda, Jorge e Corradi-Webster (2012, p. 41) referem a propósito da prática interventiva destes dispositivos móveis: “A prática no espaço da rua deve incorporar o saber, a experiência e a cultura das pessoas que o constituem e deve ser construída a partir de uma relação interpessoal baseada no vínculo, no acolhimento e na escuta qualificada”. Ainda a este propósito, no documento de apoio ao Plano Operacional de Respostas Integradas[9] pode ler-se: “A adopção do princípio do empowerment, no contexto da luta contra a droga e toxicodependência, pode significar uma mudança de atitude face ao conhecimento, experiência, necessidades, aspirações e perspectivas dos “beneficiários” da acção, no plano individual (cidadão), no plano colectivo (agentes promotores de projectos), e no plano comunitário” (PORI, 2008, p. 22).

O modelo de intervenção diversificado e territorial no fenómeno droga tem assumido, no contexto brasileiro, a expressão “Consultórios de Rua”, sendo dispositivos de saúde pública que trabalham em territórios de comércio e uso de droga (e.g. Jorge & Corradi-Webster, 2012; Andrade, 2011; Raupp & Adorno, 2010; Oliveira, 2009; Lancetti, 2008; Nery-Filho, 1993). Num primeiro momento usamos a expressão psicologia de rua no nosso diário de campo (por contraste com a psicologia de gabinete típica das intervenções clássicas), mas adotaremos agora a expressão consultório de rua. Esses dispositivos de assistência têm como base a reforma psiquiátrica brasileira que emergiu nos anos 70 do século XX consolidando-se como política de saúde neste país nas décadas seguintes (Pitta, 2011). De acordo com a autora: “Já no final dos anos 70, o movimento pelas Reformas na assistência em Saúde Mental caminhou junto aos movimentos sociais de usuários e familiares”. No mesmo sentido, Ferreira (2004) refere que a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, vem afirmar as bases da reforma sanitária brasileira que assentam em pilares como a universalidade, a abrangência e a democratização do setor, procurando reagir às políticas assistenciais de referência asilar.

Vejamos, já de seguida, como se organiza a intervenção da equipa de RRMD do Rotas com Vida com os utilizadores de drogas ao nível dos territórios que temos vindo a focar (2.3.). Posteriormente analisaremos com maior detalhe os acompanhamentos de alguns desses utilizadores às diferentes estruturas existentes na Comunidade (2.4.).

2.3 Trabalho de rua nos territórios psicotrópicos

Parámos a carrinha no PT [bairro pinheiro torres] e a realidade apresenta-se-nos cada vez com maior regularidade: os mesmos atores nos mesmos territórios. Uns vêm à carrinha pedir máquinas[10], outros trocam as suas usadas e levam novas, outros pedem uma emprestada porque se esqueceram da sua. Durante o trabalho, a conversa entre os utilizadores de drogas permanecem espontâneas. Nem mesmo o facto de estarmos ali os condiciona. Falam sobre a qualidade das Bases e dos Pacotes[11] e sobre quem estava a vender melhor produto[12] hoje… (Excerto de diário de campo, dia 16 de Março de 2011)

Nos baldios do Aleixo temo-nos apercebido de algumas situações que na Carrinha não conseguimos identificar. Hoje verificamos que vários utentes tiveram dificuldades em colocar o caldo[13] na máquina visto que a “Branca estava muito suja”. O DM pediu-nos mesmo uma máquina de propósito para passar o produto de uma máquina para outra limpa. O objetivo era fazer com que desaparecesse o pedaço de produto que não foi possível dissolver durante a preparação do Caldo. (Excerto de diário de campo, dia 10 de Março de 2011)

Os excertos acima permitem-nos exemplificar o trabalho de redução de danos que é realizado. Segundo Lancetti (2008) trata-se de uma resposta interventiva territorializada focando-se num conjunto de consumidores de drogas que aprofundaram e intensificaram a sua trajetória de rua, apresentando um quadro de acentuada vulnerabilidade psicossocial e que não procuram os serviços de ajuda de forma autónoma. Para atingir esse objetivo, o autor fala de uma territorialização da clínica sendo que essa territorialização deve passar pela sua desterriorialização, isto é, a desvinculação dos espaços onde normalmente ela se exerce (o gabinete, o hospital, o consultório). Segundo o autor: “A consulta psiquiátrica, a entrevista psicológica e a visita domiciliar, os grupos terapêuticos e as oficinas de arte e de produção são recursos pobres para o atendimento de pessoas que não demandam, que não possuem cultura psi ou que se violentam de diversas formas” (Lancetti, 2008, p.51).

No caso do primeiro excerto, apontamos para a “regularidade da realidade” com que nos fomos confrontando no decurso do nosso trabalho de rua: “os mesmos atores nos mesmos territórios”. Essa regularidade pode também ser tida em conta quando nos referimos à nossa intervenção. Assim, esse trabalho inscreve-se num conjunto de práticas interventivas características da RRMD das quais destacamos a troca e distribuição de material de consumo esterilizado aos utilizadores de drogas (sejam folhas de papel de estanho para o consumo fumado ou kits[14] de consumo para os utilizadores que fazem administração endovenosa de drogas), a sensibilização para práticas menos prejudiciais associadas ao consumo de drogas (seja ao nível da alteração da via de consumo, seja através da diminuição da dosagem administrada), bem como a promoção da adesão a programas de substituição opiácea.

Estas diferentes respostas fornecidas ocorrem em simultâneo e durante o período definido pela equipa para estar em determinado território, sendo providenciadas à medida que os utentes se vão aproximando da unidade móvel e vão abordando os técnicos da equipa. Vejamos um excerto do nosso diário de campo que dá conta da pluralidade de respostas prestadas por parte da equipa de rua:

Hoje continuamos com o nosso trabalho de redução de danos nos bairros da zona ocidental do Porto. No Aleixo, tudo circula com a mesma regularidade. Os atores aparecem na carrinha, uns trocando máquinas para o consumo injetado, outros pedindo prata para o consumo fumado, outros preservativos e outros aparecem apenas para falar um pouco. (Excerto de diário de campo, dia 9 de Agosto de 2011)

Uma outra componente do trabalho de rua com utilizadores de drogas diz respeito à sensibilização para a realização de rastreios à Tuberculose e ao VIH, sendo uma das prioridades da intervenção da equipa. Aquilo que parece ser um simples ato epidemiológico converte-se com frequência em oportunidade de intervenção psicológica:

A dada altura do trabalho de rua chega a PC à carrinha, uma vez que tinha agendado um Klotho[15] para hoje. (…) A enfermeira explicava à PC que ia retirar uma gota de sangue do indicador, (…) dizendo-lhe que entre a retirada da gota de sangue e o resultado teria que esperar cerca de 20 minutos. Perguntamos se conhecia os modos de transmissão do VIH e ela disse: “sei que têm a ver com Seringas”. Conversamos sobre se teve relações sexuais desprotegidas e a resposta foi negativa. Falamos sobre os consumos de drogas. Disse-nos que “nunca picou[16]”. Passados os 20 minutos a enfermeira referiu não existir nenhuma reação, o resultado foi negativo. (Excerto de diário de campo, dia 23 de Março de 2010)

Aquilo que parecia ser um tempo de espera morto é a oportunidade para uma intervenção psicológica, nomeadamente para poder trabalhar a adesão às terapêuticas tuberculostáticas ou para o VIH, dada a grande dificuldade que estes utentes revelam na continuidade da terapêutica.

Até agora temos vindo a focar uma forma de trabalho de rua que se fixa nas imediações da unidade móvel ou no seu interior. No entanto, o trabalho nesses territórios não se esgota ou limita às imediações ou ao interior da equipa de rua. Tal como refere o segundo excerto que abre esta secção, ao longo do nosso trabalho fomos constatando a necessidade de tornar a intervenção desenvolvida mais diversificada e abrangente. Assim, desenvolvemos um conjunto de estratégias de RRMD que visavam a educação para práticas de consumo de drogas efetuados diretamente nos locais onde ocorrem estes consumos.

Vejamos de seguida excertos do nosso diário de campo que dão conta da intervenção que realizamos nestes locais:

O EA acabou de consumir e chamou por nós. Pediu-nos para chegar o balde (contentor para a troca de seringas) para perto dele porque tem bastantes hematomas nas pernas. Diz-nos que tem dificuldade em mexer-se. Deslocamo-nos com o balde para ele trocar as máquinas utilizadas e íamos conversando sobre as suas práticas de consumo. Dissemos-lhe para desinfectar antes e depois do chuto[17] porque isso conduz a uma desinfecção nas zonas de injecção. Aconselhávamos a evitar o consumo nas pernas, procurando outras zonas para administrar a substância. Diz-nos, contudo, que é difícil, porque já não tem veias acessíveis (…) (Excerto de diário de campo, dia 25 de Março de 2011)

Hoje deslocamo-nos novamente aos baldios do Aleixo. Quando lá chegamos, tivemos um primeiro pedido. O LD (…) falou-nos sobre a possibilidade de entrar em programa de metadona na carrinha do Rotas com Vida. Conversamos com ele sobre isso. Entretanto, o DM acabou por lhe desenrascar uma dose de branca e pó[18] e ele preparava o caldo com ele. O seu medo era o de conseguir injetar à primeira. Mas conseguiu. (Excerto de diário de campo, dia 31 de Março de 2011)

Começamos a frequentar estes locais após algum tempo de realizarmos trabalho de rua nas imediações da carrinha, indo um elemento da equipa (sempre acompanhado pelo educador de pares) para esses espaços enquanto que os outros elementos ficavam na unidade móvel a realizar o restante trabalho de rua. O trabalho do educador de pares[19] facilitou o acesso da intervenção realizada pela equipa aos territórios psicotrópicos considerados, permitindo e facilitando os seus processos de empoderamento e de advocacy. A sua experiência adquirida nas múltiplas vivências como utilizador de drogas funcionou várias vezes como elemento formador de outros elementos da equipa técnica.

 Foi-nos possível observar, nos contextos de consumo acima referidos, um conjunto de práticas de consumo de drogas que se revelam de elevado risco para a saúde do consumidor. Dessas práticas destacamos a não utilização de “garrote” para a dilatação das veias de modo a evitar inflamações/hematomas localizadas no consumo endovenoso, a injeção de drogas nas extremidades do corpo (nomeadamente nas mãos e nos pés) comportando riscos na formação de necrose tecidular nessas zonas e podendo levar, nos casos mais extremos, à amputação da zona referida. No caso do consumo fumado, destaca-se a partilha de canecos[20] entre outras práticas de consumo de risco para os consumidores.

Importa ainda referir que apesar de constatarmos a presença desses comportamentos de risco, pudemos também observar, por parte de alguns atores, comportamentos que evidenciam uma capacidade de gestão quer dos consumos (nomeadamente ao nível da quantidade de substância administrada e ao nível da forma de consumo) quer de gestão da própria abstinência. Exemplificamos o que referimos com um excerto do nosso diário de campo:

O MLF disse-nos nos baldios: “a razão de ser da minha toxicodependência é o primeiro caldo.” (…) Disse-nos depois que quando está a ressacar pode ter pastilhas de metadona no bolso mas prefere aguentar a ressaca para depois obter maior prazer quando chutar heroína (Excerto de diário de campo, dia 15 de Março de 2011)

O que o excerto acima nos mostra é que o indivíduo é ativo e constrói ativamente significados em torno do seu comportamento de consumo. Como salienta Southweel (2010, p. 101): “As such, people who use drugs can be defined as calculated risk takers. This challenges the orthodox addiction archetypes that describe people who use drugs as victims either of substances with some type of pseudo-magical quality or of the ‘evil drug dealers’ who peddle these drugs (Booth, 1997)”. A regularidade com que observamos estes comportamentos de autogestão da conduta adictiva nos utilizadores afasta-nos da ideia de que todo o utilizador é uma mera “vítima da substância”, ou vítima do “diabo do vendedor” de droga como refere a citação atrás. Pelo contrário, ele apresenta-se como alguém que procura a maximização do efeito prazeroso da substância ainda que, por vezes, apresente, tal como referimos acima, comportamentos de risco de modo a atingir esse fim. Assim, o objetivo da intervenção não se situa ao nível da abstinência de drogas mas antes na gestão do risco de consumo de substâncias de modo a diminuir as consequências negativas que resultam de algumas administrações de elevado risco para a saúde do consumidor.

Voltaremos a focar estes locais de uso de drogas na secção 2.5 deste trabalho uma vez que eles se mostraram como plataformas espaciais de elevada significação psicológica para alguns utilizadores.

2.4. Acompanhamentos às estruturas da comunidade

Hoje deslocamo-nos ao bairro do aleixo com o objetivo de fazer o acompanhamento de dois utentes ao CRI Ocidental que tinham marcado previamente connosco essa deslocação. Ao estacionar a carrinha na Rua AL no Aleixo apareceu apenas o JP. O outro utente, o JA, não compareceu. Esperamos um pouco para ver se ele entretanto chegava. Não chegou. Foi então que seguimos para o CRI Ocidental com o JP. (Excerto de diário de campo, dia 20 de Outubro de 2009)

Além do trabalho de proximidade que acabamos de exemplificar na secção anterior, a equipa realiza uma variedade de acompanhamentos de alguns utentes a diferentes estruturas da Comunidade. A este propósito, Domanico e Malta (2012) referem a importância destas estruturas sóciosanitárias na progressiva aproximação dos consumidores de drogas à rede de cuidados, principalmente nos utilizadores com um acentuado afastamento em relação a ela ou que estabelecem com ela uma relação tangencial, apresentando dificuldades no acesso autónomo aos serviços de assistência e tratamento.

Os encaminhamentos realizados pela equipa de rua são possíveis devido à atuação concertada e integrada das respostas interventivas permitindo o funcionamento em rede com outras instituições e contribuindo para a criação de um diálogo comunitário constante entre as diferentes estruturas. Esse trabalho em rede, funcionando numa lógica de aproveitamento das sinergias das diferentes instituições existentes, permite estar em congruência com o Plano Operacional de Respostas Integradas que defende justamente como um dos pilares interventivos a criação de parcerias entre as diferentes respostas. “A intervenção em rede traduz-se na activação e construção de parcerias para a intervenção, ou seja, acções conjuntas definidas e operacionalizadas por vários actores (individuais e colectivos) que têm um objectivo comum e que para a sua concretização partilham e disponibilizam vários recursos (conhecimento, oportunidade, logísticos, financeiros, humanos, etc.)” (PORI, 2008, p.  15). No mesmo sentido, Ornelas (2004, p. 298) refere que: “Community level interventions involve strategies for the promotion of individual change and a policy strategy aimed at creating change in environmental conditions. Community iniciatives use mechanisms to bring about multi-component changes (ob. Cit Florin, 2002).”

Quando nos focamos nos acompanhamentos realizados às estruturas de tratamento para a toxicodependência verificamos que esse trabalho pode cumprir uma diversidade de objetivos. Assim, podem ir desde consultas médicas e da restante equipa técnica para o acolhimento inicial do utente com a finalidade de iniciar terapêutica de metadona na nossa equipa, consultas médicas apenas para a revisão da dosagem de metadona em utentes que já se encontram a realizar essa terapêutica na equipa de rua em regime de baixo limiar, até consultas de psicologia e de serviço social num setting interventivo que não o setting de rua. Analisaremos abaixo duas passagens do nosso diário de campo que ilustra o que acabamos de referir:

Na consulta de psiquiatria do CRI Ocidental, o psiquiatra conversava com o JP sobre a possibilidade dele vir a aumentar os consumos de cocaína mesmo tomando a metadona uma vez que esta apenas corta o efeito da heroína e não da cocaína. O médico prescreve-lhe dose inicial de 30 mg/dia, (…) aumentando diariamente numa proporção de 10 mg até às 70 mg. A toma das doses será diária e na equipa de rua do Rotas com Vida. (Excerto de diário de campo, dia 20 de Outubro de 2009)

Estamos no PT, cumprindo o horário neste território (10h35-11h35). Chega à carrinha o RF para tomar a dose de metadona, uma vez que é nosso utente deste serviço. Diz-nos que quer que marquemos uma consulta para ele no CAT[21], que quer ir para lá tomar a metadona. Diz que lá lhe dão a metadona em pastilhas e aqui nas equipas de rua não. Expliquei ao utente qual a diferença entre estar num programa de metadona num CAT e numa equipa de rua, nomeadamente no que isso representa ao nível do controlo dos consumos de drogas. Diz que se encontra abstinente e mesmo que não estivesse que esteve anteriormente no CAT da Feira e trocava as urinas só para não o chatearem (Excerto de diário de campo, dia 08 de Agosto de 2013)

Os excertos mostram as várias possibilidades que se colocam nos acompanhamentos: tanto se realizam em direção à estrutura de tratamento com o objetivo de que o utente seja aí acolhido e venha depois realizar as tomas diárias na equipa de rua (caso do primeiro excerto) como também se procede ao acompanhamento dos utilizadores a estas estruturas com a finalidade de que estes fiquem lá integrados em programas de tratamento. Em ambas as situações conseguimos perceber que a equipa desempenha uma função de mediação entre estas estruturas e os utilizadores de drogas. Essa mediação revelou-se particularmente importante nos sujeitos que permanecem com um maior afastamento da rede de apoio. Escrevíamos a dado momento no diário de campo que os acompanhamentos às estruturas existentes na comunidade procuram colmatar o hiato existente entre a população-alvo e essas respostas.

Os acompanhamentos dos utilizadores às estruturas implicavam momentos de espera até ao atendimento. A sala de espera constituía-se como um setting que possibilitava o começo da escuta terapêutica. Vejamos o seguinte excerto do diário que dá conta disso mesmo:

Chegamos ao CDP na Rua da Constituição e o PV continuava impaciente. Vi que o NS, outro utilizador de drogas que foi connosco, permanecia muito calmo, sentado numa cadeira da sala de espera do CDP, afastado de nós e com um livro de sudoku. Sentei-me ao lado dele. Perguntei-lhe se ele gosta de sudoku e ele disse-me que sim, que enquanto joga é da forma que mantêm a cabeça ocupada e que isso lhe permite não andar a pensar em coisas que não deve, nos problemas dele. Falou-me de alguns dados da sua história de vida. Referiu-me que tem 24 anos, faz anos no próximo domingo (dia 21/02). É natural da Ilha Terceira dos Açores. Perguntei-lhe se tinha família cá e ele disse-me que sim, que parte da família está em Vila Nova de Gaia (da parte do pai), e que outra parte da família (da parte da mãe) está nos Açores. “Eu fiz muita coisa torta doutor, tive oportunidades e deixei-as escapar” disse-me ele. (Excerto de diário de campo, dia 19 de Fevereiro de 2010)

 

A esta escuta exercida no espaço da sala de espera chamamos, a dado momento do nosso diário de campo, como a psicologia de sala de espera. Juntamente com a psicologia de baixo limiar de que falaremos adiante, constitui-se como um dos dois elementos-chave daquilo que designamos num primeiro momento como psicologia de rua – Consultório de Rua a partir de agora, adotando a expressão que tem vindo a ser proposta no Brasil.

Todo o trabalho de proximidade que procuramos descrever sumariamente atrás apresenta um forte potencial para a construção de Conhecimento no âmbito do fenómeno droga. O contacto direto com os utilizadores de substâncias psicoativas permite o acesso a zonas da Cidade que têm permanecido esquecidas e alvo de diferentes processos de estigmatização. Isto permitiu o acesso a níveis de expressão do fenómeno droga que permaneciam até aí desconhecidos ou mal caracterizados. Procuraremos evidenciar isso mesmo na secção seguinte.

2.5 Status dos atores e identidade de lugar nos territórios psicotrópicos

Verificámos a existência de três tipos de consumidores de droga que recorrem aos territórios psicotrópicos: os esporádicos - aqueles que recorrem ao território psicotrópico espaçadamente. São também aqueles que fazem um consumo recreativo de drogas, os “consumidores de fim-de-semana”, como a eles mesmos se designam;  os regulares - aqueles que apesar de se deslocarem diariamente ao território psicotrópico não permanecem nele ao longo do dia. Muitas vezes a sua deslocação resume-se a ir “comprar produto”[22]. Algumas vezes são indivíduos que trabalham, tendo de deslocar-se aos locais de compra nas alturas do início ou no final do trabalho, ou então na hora de almoço; os permanentes - aqueles que estão mais tempo no território. É nestes atores que se verifica um enraizamento profundo ao lugar, sendo nele que o ator encontra as condições para experimentar uma determinada posição existencial.

Foquemo-nos agora nos atores que tipificamos como permanentes. É com eles que o vínculo com a equipa de rua se intensifica e desenvolve. Para se adaptarem à expressão de rua do fenómeno droga, vão-se envolvendo numa série de atividades informais que aí existem. Passamos a exemplificar com três tipos de atividades desenvolvidas pelos atores permanentes: os “capeadores” - são os intermediários entre o vendedor e o consumidor. Trabalham para um “patrão”, com um determinado horário que é cumprido de modo rigoroso. Apregoam no bairro o nome do patrão para que os clientes se desloquem a ele e lhe comprem produto; o “vigia” - é responsável pelo controlo das entradas e saídas do bairro, sinalizando com o grito “água” sempre que avista alguém que supõem poder por em perigo a atividade em curso, nomeadamente a Polícia; os “enfermeiros” - são indivíduos com um razoável domínio da técnica de injeção. Devido a isso são solicitados para injetarem os que sentem dificuldade em o fazer. O pagamento pode ser feito em bases de cocaína, em pacotes de heroína ou em troca de material de consumo, o que também acontece com capeadores e vigias.[23]

Acabamos de apresentar três atividades realizadas pelos atores que fazem desses territórios o seu quotidiano (os capeadores, os vigias, os enfermeiros). O desempenho das mesmas traduz-se num determinado Status por parte desses atores. Este desempenho assume um caráter rigoroso e é cumprido de forma zelosa por quem o executa. Uma passagem do nosso diário de campo no bairro do Aleixo dá conta do que acabamos de dizer através do comportamento do vigia do Bairro:

“O DM vem trocar máquinas (seringas) à carrinha. Está agitado. Vejo que está sempre a olhar para a parte de cima do Bairro, para controlar. Como lhe é difícil trocar máquinas e vigiar, pega no Balde de troca de seringas e puxa-o mais para cima do passeio. Desloco-me com ele. Coloca as máquinas enquanto eu as conto e ele vigia. Retoma depois o “posto”. (Excerto de diário de campo, dia 03 de Outubro de 2013)

Em que é que este conhecimento dos territórios e dos atores é importante para a intervenção? O trabalho de rua da equipa, ao confrontar-se com essas dinâmicas dos atores sociais, inscreve no seu trabalho essas mesmas dinâmicas, tornando-as também como âmbito da intervenção. Exemplificamos essa situação com uma passagem do nosso diário de campo quando queríamos acompanhar uma capeadora do bairro do Aleixo ao CDP do Porto e tivemos necessidade de ir falar com o dealer para quem esta utilizadora de drogas trabalhava:

“(…) ela acenava-me com a mão para eu ir falar com ele (com o patrão dela). Assim o fiz. Apresentei-me ao sujeito e disse-lhe que era importante a SC ir ao CDP, que era algo rápido e muito importante para a saúde dela. Ele olhou-me e disse: “vá, vá, 20 minutos e tudo bem…” (Excerto de diário de campo, dia 18 de Abril de 2011)

Pudemos ainda constatar em alguns atores em situação de Sem-abrigo, uma organização personalizada do seu local de pernoita, construindo em seu torno uma determinada identidade de lugar. Assim, verifica-se nesses locais, uma série de comportamentos por parte de alguns utilizadores de drogas que visam a personalização dos mesmos, como por exemplo a existência de pequenas pedras a rodear o local como que a delimitar um “espaço pessoal”, tapete de entrada, vários materiais (espelhos, cómodas velhas, cortinas, objetos de decoração) no cubículo, prateleiras ou pósteres:

“Enquanto apanhávamos uma altura mais morta nos baldios vimos as recentes “modificações” que o NT fez ao seu cubículo. O NT apresenta agora um novo móvel com 3 prateleiras. Apresenta também, à entrada, um balde para o licho. Contêm pedras de vários tamanhos a criar um perímetro à sua “casa” e um tapete à “entrada”. (Excerto de diário de campo, dia 12 de abril de 2011)

 

O conceito de “Psychological Home” avançado no domínio da Psicologia Comunitária por Sigmon, Whitcomb e Snyder (2002) foi particularmente importante na análise destes comportamentos. De acordo com os autores, este conceito envolve três componentes fundamentais: componente cognitiva – o sentimento de pertença ao lugar num determinado território tem como consequência uma orientação cognitiva no quotidiano do ator, levando a momentos “em casa” e “fora de casa”; componente afetiva - bem visível através de uma conexão emocional partilhada entre os atores na mesma posição existencial e transgressiva; componente comportamental – existe um investimento comportamental por parte dos atores em organizarem esses locais de pernoita.

O nosso trabalho com consumidores de drogas duras nos territórios psicotrópicos da zona ocidental do Porto permite-nos verificar que esta identidade de lugar assume ainda mais importância quando o utilizador aprofundou o seu afastamento com a esfera escolar, laboral, familiar e encontra nestes locais o espelho de si e da sua conduta. Diríamos que estes espaços se constituem como organizadores existenciais para sujeitos que fragmentaram as suas relações sociais.

2.6. O psicólogo no trabalho de rua - a psicologia de baixo limiar

LM: Quanto aos jogadores da Selecção, só gosto do Cristiano Ronaldo. (…) É um grande jogador e merece o dinheiro que ganha. (…) Há muitos que fazem ainda menos que ele e também ganham milhões. Em todos os clubes por onde passou era um grande jogador.(…) Mas, resumindo, eu gosto é do meu Beira-Mar e do meu Benfica, não gosto da Seleção (Excerto de diário de campo, dia 8 de Agosto de 2012)

Durante a nossa intervenção fomos constatando que “a Droga” se constituía simultaneamente como o principal definidor discursivo entre os técnicos bem como o limitador das possibilidades discursivas do utilizador de drogas. Se, por um lado, “a Droga” explicava aos técnicos todos os problemas familiares, escolares ou de outro tipo que o indivíduo apresentava (mesmo quando esses problemas nada tinham que ver com a adicção propriamente dita) por outro, “a Droga”, constituia-se também como o locus explicativo que o utilizador identificava e utilizava para enquadrar os problemas decorrentes da sua trajetória existencial. Remetidos a uma posição passiva, incorporavam aquilo que os especialistas dizem que eles eram, confirmando portanto as definições que o dispositivo ia tecendo a seu respeito.

Apesar disso, a análise do nosso diário de campo, permitiu-nos constatar a possibilidade de construção de uma relação de confiança com os atores sociais no contexto da intervenção de rua, a partir de conversas sobre as banalidades da vida quotidiana e sobre assuntos que fogem ao usual “problema da droga”. A formação de uma relação sólida, de confiança e horizontal revelou-se como fortemente importante na construção dessa interação conversacional com os atores com que íamos contactando ao longo do nosso trabalho - interação de tipo not knowing (Anderson & Goolishian, 1992). Essa interação horizontal levou-nos a encetar um diálogo com os atores que extravasava o registo, diríamos, mais clínico, mas que era revelador da cosmovisão dos indivíduos sobre assuntos caracterizados pela não centração no tema da droga, contribuindo para a quebra do circuito fechado temático técnico-utilizador-técnico em torno da droga e suas peripécias de consumos e paragens. Chamamos à interação de rua com estas características psicologia de baixo limiar porque, à semelhança da metadona que é dada no contexto da intervenção da RRMD, também esta psicologia está carregada de baixa exigência, pois não há nenhum tópico à priori que deva ser falado, todos eles são admitidos e valorizados, num clima de fluidez discursiva típica de quem quer ser ouvido como pessoa e não como toxicodependente. Vejamos o seguinte excerto de diário de campo:

Estava a sair do Aleixo e o MLF falava-me dos acontecimentos no Egipto em Port Said, cujos incidentes no estádio envolveram o treinador do Al-Ahly Manuel José. “Para que Mundo estamos a caminhar, S.?” dizia-me o MLF. “Quando iremos ter a Paz no Mundo?” continuava ele. Recordava com ele alguns episódios desses em Estádios de Futebol, nomeadamente os acontecimentos da final da taça dos campões europeus de 1985 na Bélgica, no Estádio Heysel, onde adeptos da Juventus e do Liverpool se envolveram em pancadarias culminando com a morte de 39 pessoas. O MLF expunha-me aquilo com algum pormenor (…) (Excerto de diário de campo, dia 02 de Fevereiro de 2012)

A presença de um ou mais sujeitos nas imediações da carrinha da equipa de rua, nas horas “mortas” do serviço, apareceu-nos várias vezes como um pedido implícito por parte dos atores para que os víssemos como pessoas, não pelo prisma do utente que recorre ao serviço da equipa, mas para estabelecer connosco um contacto de outra natureza. Vejamos um excerto do nosso diário de campo que dá conta do que afirmámos:

Estava no Aleixo a trabalhar quando o LD e o RD chegavam com a sua “princesa”, uma cadelinha que compraram por 5 euros no Aleixo. Enquanto o LD foi à Torre comprar produto, o RD ficou com a princesa perto da carrinha. Aproveitei e fui ter com ele e comecei a falar-lhe sobre ela. “Até lhe fiz uma casotinha onde eu meti uma mantinha. Às vezes estamos na cama e ela pede-me para ir lá fora fazer xixi. É novinha, tem um mês, mas é muito inteligente” dizia-me ele (Excerto de diário de campo, dia 13 de junho de 2012)

Às mesmas conclusões tínhamos já chegado em trabalho de campo anterior, com toxicodependentes de rua no centro e zona histórica de Guimarães: “ (…) a carrinha é também o espaço de sociabilidade que se cria em seu torno, importante para quem fragmentou as relações sociais, para quem se sente distanciado das estruturas formais para toxicodependentes (…) (Fernandes & Araújo, 2011, p.119).

A nossa experiência interventiva permite-nos constatar a importância do estabelecimento de uma interação técnica horizontal no trabalho de rua com toxicodependentes. Para isso torna-se fundamental a diluição do “estatuto do técnico de saúde” na “pessoa do técnico de saúde”. Se este requisito não for respeitado a intervenção poderá ficar refém daquilo a que Carl Rogers (1961/2010) chamou de “relações fabricadas”. Diz-nos o autor a este propósito: “As atitudes que consistem em rejeitar-se como pessoa e em tratar o outro como um objeto não têm grandes probabilidades de servir para alguma coisa” (p. 72). A nossa experiência interventiva nestes contextos comunitários, marcados pela pobreza e pela invisibilidade social face à sociedade dominante, chama-nos ainda a atenção para o perigo do exercício de uma postura técnica demasiado explicativa em detrimento de uma compreensiva e de baixo limiar. Verificamo-lo na primeira pessoa enquanto elementos da equipa de rua cujo trabalho aqui estamos a ilustrar: o exercício dessa postura técnica demasiado explicativa contribuía várias vezes para a manutenção de um discurso técnico-utente cujas dinâmicas assentavam num jogo de fintas e manobras assentes no “problema da droga”. Quebrar esse jogo contribuía para quebrar também a clivagem simbólica entre equipa técnica e utilizadores de drogas com consequências na aproximação entre estes dois Mundos.

Assim, a adoção de uma atitude incondicional positiva (Rogers, 1942/1974) e a criação de uma atmosfera de horizontalidade com os utilizadores de drogas, revelaram-se como instrumentos úteis ao longo de toda a intervenção. A psicologia de baixo limiar mostrou-se também importante na aceitação do nosso trabalho junto dos consumidores de drogas com que íamos contactando, nomeadamente através da incorporação técnica do vocabulário dos territórios e dos atores (por exemplo, o termo “caldar” em vez de “injetar” ou o “dar na prata” em vez de “fumar”, “droga martelada” em vez de “droga adulterada”). Em jeito de conclusão, terminamos com uma frase proferida por um ator enquanto fazíamos trabalho de rua e exercíamos essa postura interventiva de baixo limiar: “É com essa linguagem igual à nossa que nos sentimos entendidos” (Excerto de diário de campo, dia 29 de Março de 2011).

 

Nota Final

Mostramos, através do presente trabalho, como as mudanças operadas na política das drogas em Portugal têm possibilitado uma nova forma de intervir sobre o fenómeno. Se durante a fase da criação e instalação dos primeiros dispositivos de “combate à droga” estes laboravam sobretudo numa atitude de centralidade interventiva no “indivíduo-doente” ou nos seus microcontextos (Agra, 1993; Agra & Fernandes, 1993), o desenvolvimento das políticas de RRMD contribuiu para uma abertura tanto no modo de olhar quem utiliza drogas como no setting e no estilo interventivos. Essa abertura tornou viável uma intervenção de rua próxima das comunidades e atores, possibilitando que os espaços urbanos ditos “degradados” pudessem ser também lugares da escuta terapêutica em contextos marcados pelo sofrimento social.

Além disso, esta abertura às comunidades onde o fenómeno assume protagonismo tem permitido que os atores sociais locais tanto coletivos como individuais – nomeadamente os utilizadores - assumam uma postura ativa quer na construção quer na implementação das práticas interventivas. Para a assunção duma postura ativa dos consumidores de drogas muito contribuiu uma mudança na forma de o olhar, reconcetualizando-o como sujeito ativo e capaz de exercer uma atitude reflexiva acerca da sua posição transgressiva e existencial (Agra, 1990).

Apesar de tudo, partilhamos com alguns autores (e.g. Tissot & Poupoeau, 2005; Ilundain, 2004; Romani, Terrile & Zino, 2003) algum ceticismo relativamente ao verdadeiro poder transformador e emancipador destas práticas interventivas de proximidade face aos problemas quotidianos que estas comunidades apresentam. Criarão estas equipas de terreno as condições para a visibilidade de grupos que permanecem em situação de pobreza e “exclusão social” ou, pelo contrário, funcionarão involuntariamente como neutralizadores do “espetáculo da droga” que neutraliza o seu poder denunciador face às problemáticas quotidianas com que se enfrentam? Apesar de não ter sido objeto do nosso trabalho responder a esta questão consideramos que a mesma é demasiado complexa para uma resposta simples, clara e conclusiva. Mas talvez a sua importância e relevância científica e social nos sirva como guia de orientação para pesquisas futuras.

 

NOTAS

[1] Para uma análise mais detalhada do “modelo português” no campo das drogas ver, por exemplo, Greenwald (2009) e Domostawski (2011). A atenção internacional que ele tem merecido prende-se com a decisão política de despenalizar o consumo e a posse para consumo de todas as drogas ilegais e com a criação das comissões para a dissuasão da toxicodependência, que são estruturas de atendimento para consumidores que funcionam como uma instância de controlo social que pretende desencorajar os consumos sem conotar os seus utilizadores com a imagem do “criminoso”.  

[2] Utilizaremos ao longo de todo o texto o conceito de território psicotrópico (Fernandes, 1998): o território psicotrópico funciona como um atrator de indivíduos com interesse comum num estilo de vida em que as drogas desempenham papel significativo. Comporta-se como um behavioral setting, com um programa comportamental conhecido dos atores que o constituem e frequentam e que o protegem contra ameaças externas.

[3] A recorrência do termo no discurso está longe de ser atual. Um dos livros inscritos na nossa história recente, considerado influente na preparação do clima para a revolução de abril de 1974 que devolveu o regime democrático a Portugal, está povoado da palavra “crise”. Referimo-nos a Portugal e o Futuro, de António de Spínola, em 1974.

[4] Para a precisão do conceito socioespacial de periferia, bem como para identificação dos elementos de crise que caracterizariam grande parte da periferia dos grandes conjuntos urbanos em múltiplas geografias ver Fernandes e Mata (2015).

[5] Para uma visão de conjunto das políticas de redução de riscos levadas a cabo em meio prisional nos países da União Europeia ver Stover e Ossietzky (2001)

[6] A primeira associação de utilizadores de drogas – e até agora a única – teria o seu embrião em 2007 numa reunião no Porto entre utilizadores de drogas e Theo Van Dam, um dos fundadores da Junkiebond, associação de utilizadores de drogas holandesa, e seria formalizada em 2010. Notemos que a Junkiebond negociou já em meados dos anos 80 do século XX com as autoridades sanitárias e municipais a criação dos primeiros programas de troca de seringas.

[7] Trata-se da equipa do Rotas com Vida da Associação Norte Vida – Associação para a Promoção da Saúde.

[8] A nossa deslocação aos territórios foi dividida em três momentos:

  • Outubro de 2009 – Junho de 2010: cerca de 2 dias da semana;
  • Fevereiro de 2011 – Novembro de 2011: todos os dias da semana;
  • Novembro de 2011 – Dezembro de 2013: cerca de 3 dias da semana

[9] O PORI é uma medida estruturante que faz parte da estratégia nacional de intervenção integrada a cargo do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) procurando potenciar as sinergias disponíveis no território, através da implementação de Programas de Respostas Integradas (PRI) (PORI, 2008). A equipa de rua do Rotas com Vida está ao abrigo desta medida.

[10] “máquinas”: termo nativo para designar seringa

[11] Termos nativos para designar a cocaína e a heroína nos territórios psicotrópicos onde trabalhamos (“bases” – cocaína e “pacotes” – heroína).

[12] “produto”: termo nativo para designar as substâncias psicoativas.

[13] “caldo”: termo nativo para designar a substância que resulta da preparação do produto psicoativo de modo a realizar a injeção.

[14] Cada kit contém duas seringas, dois reservatórios de água destilada para a dissolução do produto e dois filtros para filtrar as impurezas que resultam dessa preparação, uma carica para a preparação do produto para consumo e dois toalhetes de álcool para desinfeção do local de injeção.

[15] Teste de Klotho - teste de deteção rápido VIH.

[16] “picar”: termo nativo que serve para designar uma administração endovenosa de drogas.

[17] “chuto” - termo nativo para designar uma administração endovenosa.

[18] Outra designação nativa para designar as principais substâncias psicoativas nos territórios onde fazemos a intervenção (“branca” – cocaína e “pó” – heroína).

[19] Segundo o The Centre for Harm Reduction do Burner Institute o educador de pares implica “o envolvimento de pessoas da mesma classe social, idade, estatuto social ou vivência cultural que se apoiam entre si, informalmente e formalmente sobre uma variedade de assuntos e preocupações específicas” (Agência Piaget para o Desenvolvimento, 2013, p. 15).

[20] “canecos” - termo nativo para designar o material usado no consumo fumado e de onde se realiza a aspiração do produto.

[21] CAT – termo que designa as estruturas de tratamento nas toxicodependências. Trata-se de uma sigla que significa Centro de Atendimento a Toxicodependentes.

[22] “comprar produto” - termo nativo que serve para designar a compra de substâncias psicoativas.

[23] A designação desses três tipos de atores – “capeadores”, “vigia” e “enfermeiros” – é fiel à linguagem nativa da nossa população-alvo.

 

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Simão Mata and Luís Fernandes Simão Mata and Luís Fernandes

Simão Mata: É Psicólogo na Norte Vida – Associação para a Promoção da Saúde e Investigador externo do Centro de Ciências do Comportamento Desviante (CCCD) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP). É ainda membro do Serviço de Consulta Psicológica nos Comportamentos Adictivos (SCPCA) da FPCEUP e estudante de Doutoramento do Programa Doutoral em Psicologia na mesma Instituição. Os seus interesses de investigação são o fenómeno droga, a exclusão social, a marginalidade urbana e a intervenção psicológica nos comportamentos adictivos. Email: simaomata@fpce.up.pt. Corresponding address: Praca de Gomes Teixeira, 4099-002 Porto, Portugal.

Luís Fernandes: É professor associado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, onde dirige desde 2005 o Centro de Ciências do Comportamento Desviante. O tema central dos seus trabalhos de investigação é a caracterização do fenómeno droga em contexto urbano – uma ecologia social dos atores e dos territórios psicotrópicos. A evolução conflitual deste fenómeno nos grandes espaços urbanos conduziu-o à pesquisa sobre o sentimento de insegurança, a marginalidade e a expressão socioterritorial dos processos de segregação e de produção de desigualdades. No campo interventivo, tem dado especial atenção às estratégias de controle social da desviância e às políticas de redução de danos nos utilizadores de drogas.


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